Capítulo II

 

II- A- SAÚDE COLETIVA

 

A constituição da medicina científica na aurora do século XIX delineou    a problemática da saúde nos registros individual e social. O saber médico

configura-se, assim, como clínica e como prática médica, discurso sobre o

corpo singular e discurso sanitário sobre o espaço social. Com a emergência

da sociedade industrial, a saúde das individualidades passa a incluir

necessariamente as condições coletivas de salubridade, não sendo mais possível

conceber a existência da saúde dos sujeitos na exterioridade das condições

sanitárias do espaço social.

Nesse contexto, porém, o que se entende por saúde pública? O que se

pretende dizer com a expressão “saúde coletiva”? Essas expressões constituem

enunciados diversos do mesmo conceito e recobrem, portanto, um mesmo campo

de práticas sociais? Ou, ao contrário, esses significantes denotam campos

diferenciados, com superposições regionais e rupturas importantes? Indicações

talvez inquietantes, já que temos naturalizada a idéia de saúde pública como

sinônimo de saúde coletiva. Seus objetos teóricos seriam, portanto, idênticos.

Temos, no entanto, boas razões para pensar que essas expressões não

se superpõem, principalmente se examinarmos a constituição das noções de

saúde pública e saúde coletiva nos registros histórico e conceitual. Trata-se de

campos não homogêneos, na medida em que se referem a diferentes

modalidades de discurso, com fundamentos epistemológicos diversos e com

origens históricas particulares.

O campo da Saúde Pública se constituiu com a medicina moderna no

final do século XVIII, como polícia médica e com a medicina social, marcando

o investimento político da medicina e a dimensão social das enfermidades. A

saúde pública foi uma das responsáveis pela construção de uma nova estrutura

urbana, pela produção de estratégias preventivas. Mas é inegável que seus

diferentes discursos se fundam no naturalismo médico, que, invocando

cientificidade, legitimou a crescente medicalização do espaço social. Combater

as epidemias e as endemias, esquadrinhando o espaço urbano com dispositivos

sanitários, constituiu-se como estratégia dominante da saúde pública. As razões

do Estado, enfim, que tomou as condições de saúde de sua população como sua

riqueza maior, constituíram-se como o grande suporte para a construção dos

dispositivos da saúde pública.

As epidemias representaram o campo privilegiado para a produção,

reprodução e diversificação da medicalização do campo social, com o

fortalecimento correlato do poder da medicina. Entretanto, a caução científica

do discurso naturalista da medicina sempre colocou entre parênteses a dimensão

política das práticas sanitárias. A recente epidemia de AIDS revela mais uma

vez esse processo, que se repete desde o século XIX no Ocidente: em nome do

discurso da ciência, legitimam-se práticas de marginalização de diferentes

segmentos sociais.

As descobertas biológicas multiplicam o poder social da medicina,

conferindo à perspectiva universalizante, presente no discurso naturalista, uma

legitimidade que silencia qualquer consideração de ordem simbólica e histórica

na leitura das condições das populações a que se destinam as práticas sanitárias.

Nesta perspectiva, as descobertas bacteriológicas de Pasteur, que representaram

um avanço fundamental no conhecimento biológico das infecções, contribuíram

para apagar qualquer significação diferencial dos corpos, nos quais se realizaram

as práticas de assepsia. A leitura naturalista se impôs como razão triunfante,

legitimando com sua universalidade as práticas de medicalização. Enfim, a Saúde

Pública encontrou definitivamente seu solo fundador na Biologia, perdendo assim

qualquer medida que relativizasse seus dispositivos e que permitisse considerar

a especificidade social das comunidades sobre as quais incide.

A concepção de Saúde Coletiva, bem ao contrário, se constituiu através

da crítica sistemática do universalismo naturalista do saber médico. Seu postulado

fundamental afirma que a problemática da saúde é mais abrangente e complexa

que a leitura realizada pela medicina. A partir da década de 1920, as Ciências

Humanas começaram a se introduzir no território da saúde e, de modo cada

vez mais enfático, passaram a problematizar categorias como normal, anormal,

patológico. Nelas haveria valores. Por isso, a instituição dessa problemática

através da medicina produziu necessariamente uma série de efeitos nos planos

político e social. O discurso da Saúde Coletiva, em suma, pretende ser uma

leitura crítica desse projeto médico-naturalista, estabelecido historicamente com

o advento da sociedade industrial.

Desde que se sublinhe que as relações do sujeito com o seu corpo, com

os outros, com as coisas, com as instituições e com as práticas sociais são

mediadas pela linguagem, pelos códigos culturais estabelecidos numa tradição

histórica e lingüística, torna-se necessário repensar o modelo naturalista da

medicina. Introduzem-se aqui, inevitavelmente, considerações acerca dos valores

e das relações de força presentes nas relações sociais. A saúde é marcada

num corpo que é simbólico, onde está inscrita uma regulação cultural sobre o

prazer e a dor, bem como ideais estéticos e religiosos. Destacando assim, nas

diversas sociedades, o corpo simbólico, as representações da vida e da morte,

do normal e do anormal, as práticas sanitárias não podem silenciar sobre o

tecido social, marcado pelas diferenças. O reconhecimento do caráter simbólico

do corpo impede sua representação como apenas uma máquina anátomofuncional,

constituída por mecanismos bioquímicos e imunológicos.

Os diversos recursos das ciências naturais são irrefutavelmente

fundamentais para a investigação e as práticas sanitárias. Mas possuem alcance

limitado, pois a problemática da saúde não se restringe ao registro biológico.

Por isso, a constituição do discurso teórico da Saúde Coletiva, com a introdução

das Ciências Humanas no campo da Saúde, reestrutura as coordenadas desse

campo, destacando as dimensões simbólica, ética e política, de forma a relativizar

o discurso biológico. As transformações recentes no campo da Epidemiologia,

no sentido de demarcar certas regiões de sua racionalidade teórica como

Epidemiologia Social, assim como as novas proposições teóricas nos campos

da Economia e do Planejamento em Saúde, revelam que esses discursos, há

muito existentes, já sofreram transformações no sentido de relativizar a

hegemonia atribuída aos saberes biológicos. Na mesma direção, as pesquisas

recentes sobre os sistemas humanos de reprodução – nas quais se destacam a

ênfase nas concepções de prazer na reprodução biológica, assim como as leituras

diferenciadas a respeito da sexualidade humana e da ordenação do corpo –

sublinham nitidamente a relativização do universalismo naturalista e a

conseqüente valorização de modelos teóricos fundados no reconhecimento dos

valores e diferenças produzidos no plano simbólico.

Nessa perspectiva, a noção de saúde coletiva representa uma inflexão

decisiva para o conceito de saúde. Um de seus efeitos certamente é o de

reestruturar o campo da Saúde Pública, pela ênfase que atribui à dimensão

histórica e aos valores investidos nos discursos sobre o normal, o anormal, o

patológico, a vida e a morte. De fato, o campo teórico da Saúde Coletiva

representa uma ruptura com a concepção de saúde pública, ao negar que os

discursos biológicos detenham o monopólio do campo da saúde.

Essa interpretação tem sérias conseqüências para o conceito de saúde

e para a gestão política das práticas sanitárias, o que nos leva a sublinhar os

pressupostos dessa troca de significantes: em lugar de público, temos o

significante coletivo. A troca desses significantes tem como desdobramento um

deslocamento da problemática da saúde de seu antigo e exclusivo centro, o

Estado, visto como espaço hegemônico para a regulação da vida e da morte na

sociedade. Retira-se deste a condição de instância única na gestão do poder e

dos valores, e se reconhece o poder instituinte da vida social, nos seus vários

planos e instituições. É no descentramento do lugar do Estado e na relativização

de seu poder que a problemática do reconhecimento das diferenças no registro

epistemológico encontra historicamente seu pólo fundador e suas condições de

possibilidade. O limite imposto ao universalismo naturalista e a abertura do

campo da saúde para outras leituras possíveis, centradas no reconhecimento

das diferenças, é o efeito teórico primordial nesse descentramento.

A multidisciplinaridade é a marca do campo da Saúde Coletiva, já que

sua problemática demanda diferentes leituras e permite a construção de

diferentes objetos teóricos. Que problemática é esta? Em suma, quais as suas

coordenadas e o que delineia suas fronteiras e seu território?

Podemos enunciá-la como relativa às relações entre a natureza e a

cultura. Desde o final do século XVIII, estas delineiam o campo da saúde e

regulam a produção epistemológica de seus discursos teóricos e o agenciamento

das práticas sanitárias. Desde então, a medicina científica se constituiu no seu

duplo registro, construindo o campo da saúde como mediação possível para

regular as relações complexas entre a natureza e sociedade. Nos dois últimos

séculos, novas práticas sanitárias foram inventadas e reinventadas, tendo como

objetivo realizar a gestão dessas relações, com base na racionalidade naturalista.

Mas o que está em questão no discurso crítico da Saúde Coletiva sobre a

Saúde Pública é a explicitação da problemática que se encontra em pauta, para

promover uma leitura diferenciada das relações estabelecidas entre natureza e

sociedade por outros saberes, já que, quando isolado, o discurso naturalista

encontra limites para realizar este trabalho.

O campo da Saúde Coletiva é, pois, fundamentalmente multidisciplinar

e admite no seu território uma diversidade de objetos e de discursos teóricos,

sem reconhecer em relação a eles qualquer perspectiva hierárquica e valorativa.

É evidente que os diferentes discursos biológicos têm um lugar fundamental no

campo da saúde, o que não deve implicar uma posição hegemônica em relação

aos outros.

Por tudo isso, a multidisciplinaridade pretende ser a marca simbólica

desta publicação semestral que agora se inicia. Pretendemos reunir trabalhos

de pesquisa oriundos de diferentes áreas de conhecimento, dando lugar tanto

aos que circulam em campos de objetividade já constituídos, quanto àqueles

que promovam a abertura de novos espaços de investigação.

Este número inaugural de Physis pretende realizar o que vimos

prometendo ao longo desta apresentação, afirmando os princípios teórico e

metodológico que nortearam a leitura aqui apresentada do campo da Saúde

Coletiva. A questão da política no campo da Saúde Coletiva se destaca como a

problemática que unifica os diversos artigos. A escolha desse eixo se justifica

não somente em função de sua importância na conjuntura brasileira, como

também em função dos impasses teóricos contemporâneos, que marcam as

políticas sociais, o que exige um trabalho de reflexão.

Neste primeiro número, reunimos leituras de diferentes áreas das

Ciências Humanas – Sociologia, Ciência Política, História dos Saberes e Filosofia

Política – que permitem interpretações dessa problemática mediante diferentes

objetos teóricos. Os trabalhos aqui reunidos expressam esses diferentes registros:

na perspectiva da Filosofia Política, busca-se realizar a articulação entre as

categorias de corpo, norma e saúde; na História da Medicina Social no Brasil,

empreende-se uma análise de discurso sobre a instauração do corpo feminino

no século XIX; através da Sociologia e da Ciência Política, desenvolvem-se

diferentes leituras sobre as recentes políticas de saúde no Brasil, entre as quais

se destacam as transformações empreendidas pelo Estado e sua inserção nas

políticas sociais; a perspectiva sociológica informa ainda uma análise sobre a

apropriação do sangue no Brasil, buscando traçar as vias de sua circulação na

sociedade

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSULTADAS

 12 PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(Suplemento):11-16, 2005 Joel Birman