Capítulo V

O modelo Flexneriano é tido como “tecnicamente elogiável, cientificamente discutível e socialmente caótico”, segundo Garrafa & Moysés. Pois com a tecnologia disponível havia capacidade para desenvolver procedimentos clínicos complexos, enquanto ainda permaneciam problemas de saúde bucal simples, como a cárie e a doença periodontal. A forma de tratamento e cura dessas doenças já era bastante conhecida, mas ainda apresentava grandes proporções, principalmente nas populações mais carentes. Mesmo nas comunidades mais privilegiadas, com os mais sofisticados equipamentos não era encontrado a inexistência destas patologias, nem um aumento significativo no nível de saúde bucal.

Dados epidemiológicos demonstravam que este tipo de tratamento cirúrgico-restaurador não era capaz de reduzir os níveis destas doenças e não conseguia controlar a demanda do serviço.

Isto afirma que este modelo não correspondeu ao que pretendia combater na defesa da saúde oral. A Odontologia tinha se tornado elitista, sem compromisso social, individualista e não acessível a todos.

Inclusive a formação do cirurgião-dentista durante a faculdade atuava neste contexto, ou seja, formando profissionais que valorizavam de forma excessiva a cura individual e desconsideravam ações públicas e coletivas em saúde. Estes saíam da universidade e ficavam por fora das características epidemiológicas do país e da real demanda.

Este modelo é restritivo e excludente, pois privilegia o caráter privado, no qual não há identificação do profissional com o comprometimento social. Esta ideologia de contrapor o Modelo atual e buscar uma melhor qualidade de vida, saúde, promoção e prevenção foi sendo alimentada ao longo dos últimos trinta anos. O passo inicial foi dado pelo médico historiador canadense Henry Sigerist.

Dentre algumas de suas palavras, se destacava: “Necessitamos um médico cientista bem treinado em laboratório e clínica. Mas, mais do que isso, necessitamos um médico social consciente dos desenvolvimentos, consciente das funções sociais da medicina, que se considere a serviço da sociedade. Numa prática que rompa as barreiras entre a medicina preventiva e curativa.”

 

Desta forma, no ano de 1945, Sigerist definiu quatro funções da medicina, na qual o termo “promoção de saúde” é utilizado pela primeira vez na história. São elas: a promoção de saúde, a prevenção de doenças, o tratamento dos doentes e a reabilitação. Afirmando que “a saúde se promove proporcionando condições de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, cultura física e formas de lazer e descanso.”

 

Esta colocação serviu de base para Hugh Leavell e Gurney Clark, no ano de 1965, elaborarem o Modelo da história natural do processo saúde e doença, utilizando-se deste conceito de promoção de saúde.

Este modelo dividia as intervenções em três níveis de prevenção: a primária, a secundária e a terciária. A promoção de saúde fazendo parte das medidas de prevenção primária, juntamente com a proteção específica.

No quadro abaixo, encontra-se essas divisões propostas:

 

 

Já no ano de 1974, o Ministro da Saúde e Bem-Estar do Canadá, Marc Lalonde, constatou as dificuldades enfrentadas pela população quanto à assistência médica oferecida, apesar dos avanços tecnológicos encontrados na época. Assim, encomendou estudos que foram publicados com o nome de A New Perspective on the Health of Canadians, ou Relatório Lalonde, que foi o primeiro documento oficial a usar o termo Promoção da Saúde. Estes estudos demonstraram os problemas gerados pelo modelo que era utilizado na atenção à saúde.

Este relatório constatou que a maior parte dos gastos em saúde estavam focalizados na organização da assistência à saúde, enquanto que as principais causas de doenças estariam encobertos em outros elementos, aos quais reuniu e denominou Campo da Saúde. São eles: biologia humana, ambiente, organização da assistência à saúde e estilo de vida. Dentro deles se distribuem inúmeros fatores que influenciam a saúde (o embrião da nomenclatura Determinantes Sociais). Até então não se considerava que aspectos socioeconômicos, políticos e culturais pudessem influenciar o processo saúde-doença. A ênfase era na prevenção, no tratamento e na recuperação, e não na educação e promoção da saúde.

Considerou-se então que, definitivamente, mudanças no estilo de vida e comportamentos (como exercícios físicos, alimentação, fumo e outros) devem ser reafirmadas nas estratégias de promoção de saúde. Além disso, se resgata a compreensão do papel fundamental das condições gerais de vida sobre a saúde.

 

Apesar da evolução nesse conceito, este Relatório sofreu inúmeras críticas por ser muito limitado, já que atribuía ao indivíduo a responsabilidade exclusiva pela sua saúde. Diferente do que propõe a definição original de promoção de saúde, que focaliza os “fatores gerais” de determinação da saúde. Os “fatores individuais” negligenciam o contexto político e social, culpando as vítimas e responsabilizando certos grupos sociais por seus problemas de saúde, cujas causas não são de sua alçada.

O relatório também conclui que “é evidente que se gasta grandes somas no tratamento de doenças que poderiam ser evitadas”.  À semelhante conclusão chegou um Cirurgião-Geral dos EUA, no ano de 1979: “Se o nosso país quiser realmente melhorar o nível de saúde dos seus cidadãos precisa reorganizar suas atuais prioridades no que diz respeito aos cuidados disponíveis, dando mais ênfase à promoção de saúde e à prevenção de doenças”.

Este documento foi um grande influenciador das políticas sanitárias de outros países e orientador das práticas de promoção de saúde ao longo da década de 1970.

 

Isto foi cristalizado em 1978, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) convocou, em colaboração com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Primeira Conferência Internacional sobre Atenção Primária de Saúde, realizada em Alma-Ata, URSS.

A Conferência trouxe um novo enfoque para o campo da saúde, colocando a meta de "Saúde para todos no ano 2000" e recomendando a adoção de um conjunto de oito elementos essenciais:

1-     Educação voltada aos problemas de saúde prevalentes e métodos para sua prevenção e controle;

2-     Promoção do suprimento de alimentos e nutrição adequada;

3-     Abastecimento de água e saneamento básico apropriados;

4-     Atenção materno-infantil, incluindo o planejamento familiar;

5-     Imunização contra as principais doenças infecciosas;

6-     Prevenção e controle de doenças endêmicas;

7-     Tratamento apropriado de doenças comuns e acidentes;

8-     Distribuição de medicamentos básicos.

As conclusões e recomendações da Declaração de Alma-Ata resultaram na realização da I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em Ottawa, Canadá, em 1986.

A Carta de Ottawa declara que a Promoção de Saúde é “o processo de capacitação das pessoas para aumentar seu controle e melhorar a sua saúde. Para atingir um estado de completo bem estar físico, mental e social, um indivíduo ou grupo deve ser capaz de identificar e realizar aspirações, satisfazer necessidades e transformar ou lidar com os ambientes. Saúde é, portanto, vista como um recurso para a vida cotidiana, não o objetivo da vida. Trata-se de um conceito positivo enfatizando recursos sociais e pessoais, assim como capacidades físicas. Portanto, promoção de saúde não é apenas responsabilidade de um setor e vai além dos estilos de vida saudáveis para o bem-estar.”

A Carta de Ottawa ampliou o significado da concepção de promoção como conjunto de ações voltadas para a prevenção das doenças e riscos individuais, para uma visão que considera a influência dos aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais sobre as condições de vida e saúde. Assim, a saúde é compreendida enquanto qualidade de vida e não apenas como ausência de doença, determinando que os problemas de saúde sejam enfrentados valendo-se de ações intersetoriais, visto que extrapolam a responsabilidade exclusiva do setor saúde.

O diálogo intersetorial é difícil, pois é preciso respeitar a visão do outro e sua contribuição para a construção de soluções para os problemas levantados. Além disso, a colaboração de vários setores, visando a um objetivo único, oferece uma série de vantagens. A intersetorialidade pode ser definida como a articulação de saberes e experiências na identificação participativa de problemas coletivos, com o objetivo de obter retornos sociais na perspectiva da inclusão social. A implementação da intersetorialidade deve se dar por meio de um planejamento que envolva todos os setores, para que todos tenham claras as suas responsabilidades e funções, trabalhando com a idéia de responsabilização múltipla, seja pelos problemas, seja pelas soluções propostas.

 

Segundo Sutherland & Fulton, os diversos conceitos para a promoção da saúde podem ser reunidos em dois grupos. No primeiro, a promoção de saúde deve ser direcionada para estratégias que busquem a mudança comportamental do indivíduo, como o hábito de fumar, prática de exercícios físicos. Isto é, atividades que dependem em maior parte da vontade e controle do próprio indivíduo. Desta forma, não se enquadra na lógica de promoção de saúde os fatores que não são controlados pelos indivíduos.

A saúde não é assegurada apenas pelo indivíduo, nem tampouco pelo setor da saúde no seu senso estrito. Ao contrário, depende de um amplo leque de estratégias, por meio de ações articuladas e coordenadas entre os diferentes setores sociais, ações do Estado, da sociedade civil, do sistema de saúde e de outros parceiros intersetoriais.

Segundo Buss, o que caracteriza a promoção de saúde modernamente é “a constatação do papel protagonizante dos determinantes gerais sobre as condições de saúde: a saúde é produto de um amplo espectro de fatores relacionados com a qualidade de vida. Suas atividades estariam, então, mais voltadas ao coletivo de indivíduos e ao ambiente, compreendido, num sentido amplo, por meio de políticas públicas e de ambiente favoráveis ao desenvolvimento da saúde e do reforço da capacidade dos indivíduos e das comunidades.”

Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), a participação ativa da população é vista como um meio essencial para operacionalizar a promoção de saúde:

“A promoção de saúde consiste na participação efetiva e concreta da comunidade na definição de prioridades, tomada de decisão e no desenvolvimento e implementação de estratégias de planejamento para atingir melhor saúde. A força motriz deste processo provém do poder real das comunidades, da posse e ter controle sobre seus próprios esforços e destinos.”

A partir da Conferência de Ottawa, em 1986, vários outros encontros e conferências foram organizados no intuito de aprofundar a discussão da promoção da saúde, incluindo estratégias importantes como políticas públicas saudáveis, meio ambiente favorável à saúde e desenvolvimento sustentável.

Destacam-se entre estes:

·                                                                                                                                                                                                                                                                            A 2ª Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, realizada em Adelaide (Austrália), em 1988;

·                                                                                                                                                                                                                                                                             A 3ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em Sundsvall, na Suécia, em 1991;

·                                                                                                                                                                                                                                                                            A Declaração de Santa-Fé de Bogotá gerada na Conferência Internacional de Promoção da Saúde, realizada em novembro de 1992;

Sendo a Carta de Ottawa referência das idéias da promoção para o mundo, a Declaração de Bogotá é o termo de referência para a América Latina.

·                                                                                                                                                                                                                                                                                 A IV Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, em Jacarta, na Indonésia, em 1997, que foi a primeira a se realizar num país em desenvolvimento. E houve outras Conferências Internacionais ao longo dos anos 2000, como no México (2000), Brasil (2002) e a última na Tailândia (2005). Todos esses movimentos acabaram por reafirmar os caminhos delineados pela Carta de Ottawa, ainda em 1986.

Cabe aqui a diferenciação entre promoção e prevenção, uma vez que estes termos são frequentemente distorcidos pelos alunos.

Em seu artigo, Dina Czeresnia resume muito bem essa diferenciação. Reproduzido então, nesse Instrumento norteador:

“Como diz Ferreira, 'prevenir' tem o significado de preparar; chegar antes de; dispor de maneira que evite (dano, mal); impedir que se realize. E seguindo o pensamento de Leavell & Clarck, a prevenção em saúde ‘exige uma ação antecipada, baseada no conhecimento da história natural a fim de tornar improvável o progresso posterior da doença’. As ações preventivas definem-se como intervenções orientadas a evitar o surgimento de doenças específicas, reduzindo sua incidência e prevalência nas populações. A base do discurso preventivo é o conhecimento epidemiológico moderno; seu objetivo é o controle da transmissão de doenças infecciosas e a redução do risco de doenças degenerativas ou outros agravos específicos. Os projetos de prevenção e de educação em saúde estruturam-se mediante a divulgação de informação científica e de recomendações normativas de mudanças de hábitos.

Já 'promover' tem o significado de dar impulso a; fomentar; originar; gerar (segundo Ferreira). Promoção da saúde define-se, tradicionalmente, de maneira bem mais ampla que prevenção, pois se refere a medidas que ‘não se dirigem a uma determinada doença ou desordem, mas servem para aumentar a saúde e o bem-estar gerais’ (Leavell & Clarck).”

 

 

Assim, Promoção da Saúde questiona o modelo biomédico, não para substituí-lo, mas para ultrapassá-lo em seus resultados, superar suas limitações e conter seus malefícios.

No Brasil, esta estratégia também influenciou movimentos, como: a VIII Conferência Nacional de Saúde, a Constituição de 1988, a criação do Sistema Único de Saúde, com sua reestruturação no momento atual através do Programa de Saúde da Família (que tem em suas bases a estratégia da Promoção da Saúde). Nestes movimentos é ressaltada uma proposta de atribuição de liberdade de escolha ao indivíduo, ao mesmo tempo em que o vincula à responsabilidade social.

Entretanto, apesar dos avanços vindos destes eventos, ainda permanece uma visão simplificada de promoção à saúde.

O grande desafio, hoje, consiste em desenvolver uma sociedade mais saudável, estimulando o planejamento de políticas públicas capazes de promover a saúde, investindo em pesquisas e ações que incidam na melhoria da qualidade de vida das populações e estimulando a participação popular.

Pois, proporcionar saúde significa, além de evitar doenças e prolongar a vida, assegurar meios e situações que ampliem a qualidade da vida "vivida", ou seja, ampliem a capacidade de autonomia e o padrão de bem-estar que, por sua vez, são valores socialmente definidos, importando em valores e escolhas.

Com estes conceitos em mente, a disciplina de Odontologia Social e Preventiva I busca integrar os alunos da graduação com esta realidade através de trabalhos de campo diferenciados. Nestes projetos os alunos aplicam a teoria orientada nas aulas com os diversos grupos encontrados.

A promoção de saúde é debatida, problematizada, fundamentada na teoria e, enraizada e praticada na sua subjetividade.

 

 

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSULTADAS:

·           SÍCOLI, J. L., NASCIMENTO, P. R.  Promoção de saúde: concepções, princípios e operacionalização. Comunic, Saúde, Educ, v7, n12, p.101-22, fev 2003  

 

·           BUSS, P.M.   Promoção da saúde e qualidade de vida. Rev. Ciênc. saúde coletiva vol.5 no.1 Rio de Janeiro  2000

 

·           Denise Aerts; Gehysa Guimarães Alves; Maria Walderez La Salvia; Claídes Abegg - Promoção de saúde: a convergência entre as propostas da vigilância da saúde e da escola cidadã. Cad. Saúde Pública vol.20 no.4 Rio de Janeiro Jul/Ago. 2004

 

·           Paulo Marchiori Buss -Promoção da saúde e qualidade de vida - Ciênc. saúde coletiva vol.5 no.1 Rio de Janeiro  2000

·           Dina Czeresnia O CONCEITO DE SAÚDE E A DIFERENÇA ENTRE PREVENÇÃO E PROMOÇÃO Cadernos de Saúde  pública – 1999

 

·           Samuel Jorge Moysés; Simone Tetu Moysés; Márcia Cristina Krempel - Avaliando o processo de construção de políticas públicas de promoção de saúde: a experiência de Curitiba - Ciênc. saúde coletiva vol.9 no.3 Rio de Janeiro Jul/Set. 2004